AS TERRAS DE ANA
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Schiele, Death and the Maiden (1914–15) |
Você pode não acreditar. Está no seu direito inalienável de fazer questionamentos sobre qualquer afirmação leviana, mas ela escreve esta crônica encolhida no chão escuro e úmido de uma mata densa, protegida, apenas, por folhas amareladas como ela, caídas como ela. Já não é noite, mas ainda não amanheceu - hora fria que azula tudo. Seu pensamento, grade no vazio, é preenchido por lacunas que inundam o que deveria estar oco e faz estragos incalculáveis no patrimônio emocional que Ana amealhou.
Ela tem terras improdutivas a perder de vista e as olha com o egoísmo da mãe que escolheu não ser. Houve um tempo em que desejou que sua terra fosse a de Atlas: o peso do mundo nos ombros cansados, sustentando rebeldias que ela comprava e pagava à vista, sem regatear com a vida. Mas cansou de ser perdulária. Findou por aprender que, se até Atlas precisou colocar o mundo nos pilares de Hércules, seria ingenuidade demais insistir em segurar pesos insuportáveis.
Olhou para o mundo que lhe pertencia e começou a tecer uma mortalha de remorsos para se proteger do frio enquanto esperava o momento de se refazer. A ideia de novas seivas devolvendo as chances perdidas lhe acalmavam, limpando com sangue o ventre imundo pela ausência de vida. Vai, peste. Espreme tuas tripas para alcançar alguma purificação. Não mataste o que teimava? Agora purga para teres o alento de alguma remissão capenga.
Ana entendeu ali que mortes são oportunidades e que ser literal é uma estupidez.
A terra que acolhe, refaz e depois devolve transformações, lhe recebeu dando em troca a compreensão que ela se ressentia de nunca ter tido. Enquanto morria, cantava canções de ninar, cabeça no colo do elemento. Eram duas mães se acalentando porque a terra também precisava de Ana para seguir fértil e aquelas lágrimas eram um maná.
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Acocorou-se na mata, unhas cravadas no chão para suportar, sem alarde, a dor do seu renascimento. O juízo refez o percurso das escolhas que a trouxeram até aqui. Fidelíssima com seu compromisso de liberdade, expulsava a algema, saco encarnado insistente em pulsar, enquanto defecava de dor e alívio. Ensanguentada, cavou uma cova rasa e jogou dentro o saco e o estrume que produziu, esperançando que dali pudesse surgir ao menos um arbusto.
Cansada, dormiu no colo da mãe, soluçando. Era covarde. Escolheu o atalho de morrer em parte porque teve medo de ser inteira.
Google imagem - Schiele, Egon
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AS TERRAS DE ANA
Reviewed by Cris Quintas
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07:00
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